quarta-feira, abril 25, 2007

A encenação da ironia

Podia fingir que não escutava o martelar da dor,
Que o sangue que derramo a cada pancada
Mais não é que água da chuva que transborda.
Podia despistar o arregalar de olhos
Pelos labirintos que se percorre nos pesadelos
Para fugir às garras da criatura que nos persegue a todo o custo.
Podia até desaparecer por entre o nevoeiro,
Traiçoeiro no seu jogo de múmias ressuscitadas
E talvez conseguisse envolver-me nas suas peles.
Podia fazer-vos acreditar que deixara de ser quem fora,
Que o templo fechara e o ancião não mais nele mora,
Com a vossa superficialidade de tocar, a facilidade consumada,
Pobres olhos arregalados de espanto, quais espantalhos reformados,
Que os corvos percebem que mais não são do que palha podre.
Podia ser tudo e nada ao mesmo tempo. Podia ter o céu como tapete
E o vento como servo delicado que me eleva a cada momento.
Neste poema sou eu quem manda, quem tem o poder de escolher
Que palavras vos atiro à cara e quais as que guardo para os outros.
Como podeis ser tão fundos de miséria que até a deus insultais pelo que sois.
E não adianta o fingimento, o jogo de disfarces múltiplos, para um público sem olhos.
Podia fingir que durmo. Que sou parvo, estúpido e toda a miudeza que para vós sou.
Podia fingir que haveis cortado os dedos. Aqueles que me apontavam o crime.
Mas este é o meu mundo e nele vós sois o reflexo do que escondeis por dentro.
Arregalai os olhos de pavor. Hoje presenteio-vos com a dor.
A minha multiplicada pela vossa mais a de Cristo que ironicamente morreu por vós.

15.01.06

quarta-feira, abril 18, 2007

III.

A manhã é pesada, com as gotas de orvalho e os suspiros sonâmbulos do errante que vagueia em busca da própria sombra. Divida em dois, um hemisfério cortante de arteríolas em carne viva. Arrancaram-no aos pedaços, sem banda sonora, sem qualquer tipo de ascensor. Sinto-me quente, num estado de transpiração obliqua, da voz que vem do outro lado da cortina, opaca por hemisférios que nada reflectem, só cospem em soluços entremeados por gargalhadas inodoras. Pudesses tu um dia, uma noite, uma madrugada elevar-te para lá da troposfera e sentires a leveza da separação do espírito do corpo da carne dos ossos da unha da carne que se encrava na pele cada vez mais poder num fetiche de ideias mentais atropeladas por cisnes que gritam como loucos desvarios impelidos pela cegueira. Na asa direita do cego, o mesmo que ouve o que diz e trauteia a palavras do vizinho moribundo da campa ao lado quando se lembra de recitar exaustivamente os versos que ditava à sua esposa no momento de um orgasmo de desenho animado. Daí as elevações, as velas, os crisântemos e as fissuras na pele. A raiz. E a flor cresce negra como a noite, ponteada pelos murmúrios reflexos de charme e glamour, a passerelle da vida em passos lentos para que filmem as quedas, a pique, tal e qual a queda dele. Deixa – me sentir o sabor desse sangue envenenado, sentir-lhe os espinhos a cortar-me a garganta, lentamente, sugar-me cada palavra que se prende em cada espinho… serás tu capaz de me soletrar numa prosa… enquanto me esvaio e a sede se atenua. Só porque me chamo do lado de fora deixo-me sem uma referência ao facto de ter esquecido de me acordar. Deixo-me estar porque prefiro ver-me sonhar. Acho até que vou cantar aquela canção de embalar em que só se mexe os lábios.